domingo, 26 de outubro de 2025

1905 - (da consciência de existir) O uso do telemóvel e a perda da experiência ao vivo

 

Há u



m gesto que se tornou quase inevitável em qualquer espetáculo ao vivo: o erguer do telemóvel. No caso de um concerto em sala de espetáculos a questão tornou-se muito complicada. A sala mergulha na penumbra, a música começa — e, de repente, um e depois outro e mais outro e, novamente, o primeiro ecrã luminoso acende-se no escuro. Quem os usa acredita estar a guardar uma lembrança, mas o que realmente faz é roubar-se a si próprio e aos outros a experiência que espera querer preservar (será que a quer?).

Não é apenas uma questão estética ou de etiqueta; é uma questão cultural. Usar o telemóvel para gravar vídeos num concerto — sobretudo em espaços fechados — é um ato de desatenção e de desrespeito, tanto para o público como para os artistas. A luz do ecrã distrai quem está ao lado, quebra a imersão coletiva e desvirtua o sentido do momento. Pior ainda: quem grava nunca mais vê o vídeo. Aquele ficheiro, tremido e com som distorcido, ficará esquecido, sepultado entre centenas de outros registos irrelevantes.

O paradoxo é evidente: temos ao alcance de um clique gravações em alta definição no YouTube ou no Spotify, mas insistimos em filmar trechos de má qualidade de concertos que poderíamos simplesmente escutar com plena atenção. O telemóvel transformou-se num apoio da memória e, ao mesmo tempo, no seu maior inimigo. Em vez de viver o momento, tentamos capturá-lo — e, ao fazê-lo, deixamos de o viver.

Penso nisto com particular desconforto ao recordar o concerto a que hoje assisti, com obras de Viktor Ullmann, Szymon Laks e Dmitri Shostakovich. Músicas densas, exigentes, …. A sua força reside na escuta concentrada, na capacidade de acompanhar. Como é possível fruir uma obra assim enquanto se segura um telemóvel, verificando se o enquadramento ficou bem? É impossível. A atenção dispersa destrói a música.

A dependência do telemóvel tornou-se um fenómeno transversal. Muitos dos que censuram os jovens pela sua “adição digital” revelam igual incapacidade de estar desconectados durante trinta minutos. Vivemos num tempo em que a ausência de ecrã gera ansiedade, e em que a prova de ter vivido um acontecimento parece depender de o ter publicado. Partilha-se, mas não se sente; grava-se, mas não se compreende.

O que está em causa é mais do que uma questão de comportamento: é uma forma de alienação. Substituímos a experiência direta pela mediação tecnológica, a atenção plena pela dispersão constante, o silêncio pela notificação. O concerto — espaço de encontro entre intérprete e ouvinte — torna-se cenário para autopromoção, pano de fundo para “stories” efémeras que nada comunicam.

Assistir a um concerto é um ato de presença. Implica disponibilidade e escuta. Exige tempo e concentração. E, sobretudo, implica aceitar que há momentos que não se registam — apenas se vivem. Talvez seja tempo de redescobrir esse prazer: o de estar verdadeiramente presente, de olhos e ouvidos abertos, sem o filtro luminoso de um ecrã.

Começo a duvidar!

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

1904 (dos lugares) - Da Janela do Anfiteatro 1 da Fundação Calouste Gulbenkian

Há mais de vinte anos que entro no anfiteatro 1, da Fundação Calouste Gulbenkian e procuro sentar-me, aproximadamente, no mesmo lugar, junto à janela. O olhar repousa sobre o jardim — esse território de harmonia onde a natureza e a cidade se encontram em diálogo. As árvores firmes, mesmo em dias de vento, as aves inquietas, os gatos sempre com a mesma rotina diária, os transeuntes apressados ou distraídos compõem um cenário que nunca se repete, mesmo quando parece igual.

Dentro da sala, a vida tem outro ritmo. Ao longo de mais de duas décadas, escutei vozes notáveis, ideias luminosas e debates que deixaram rasto e muitas outras mais comuns, como a vida. A cada conferência sim e sempre, o pensamento sempre a em diálogo com o que via lá fora: a serenidade das árvores, o rumor das folhas, a vida que se chega a nós e nem sabe que é observada.

Este auditório é um território de pertença, onde o exterior e o interior, o visível e o pensado, o espanto, se fundem.








quinta-feira, 14 de agosto de 2025

1903 - (da Resiliência) Crónica de um dia de praia

Decidi ir à praia à tarde.

Chego à Costa de Caparica e ao parque de estacionamento. Vejo muitos carros a sair; fico satisfeito por pensar que irá ser fácil encontrar lugar.

Informam-me que a Via Verde está fora de serviço; apalpo o bolso e vejo que tenho moedas. Entro e estaciono.

As praias estão cheias e está hasteada bandeira amarela.

Chego à segunda praia: há uma enorme escada de madeira, meio instável; decidimos não a usar para chegar à areia. Constato que já não existe a escada de cimento, a meio da praia, que vinha da minha infância. A alternativa seria ir até ao fim do paredão para descer pela rampa dos barcos de pesca artesanal.
Opto por descer por umas pedras; escorrego e caio. Sou prontamente ajudado por um casal que saía da praia. Agradeço e informo que foi só o susto: “Está tudo bem, está tudo bem” — repito, também para mim mesmo.

Arranjo um lugar à beira-mar; aqui ficamos. Está bandeira amarela, a maré está cheia… sinal de que começou a vazar e, como é normal na Costa, a água está a puxar…
O nadador-salvador, atento à praia e aos banhistas, apita para um ou outro virem mais para terra. Parece-me que é obedecido…

O primeiro e o segundo banhos foram reconfortantes! Estava calor, a água a boa temperatura. A praia da Costa estava, como de costume, com ondas; soube-me bem.

Quase que levo com um surfista e dois ou três miúdos que vêm com as ondas…

De regresso à toalha, saco de um livro. Veio uma onda e molhou a minha toalha.

Mudamos de poiso. Aqui também há muita gente. Sento-me na toalha molhada para poder ler. Por algum motivo, não me consigo concentrar na leitura. Percebo que há música perto de nós: no meio de um grupo de adolescentes, um deles traz uma coluna Bluetooth. Anda com a coluna na mão e mal consegue jogar futebol com os amigos tal o desiqulíbrio que a coluna lhe dá.

Penso, mais uma vez, que deveria trazer sempre comigo também uma coluna Bluetooth e pôr o meu Mozart em altos berros — a Sinfonia nº 40, por exemplo, ela que me acompanha em tantas noites de trabalho — ou uma bela ária de ópera, em que as potencialidades da voz feminina são exploradas até ao extremo.

Procuro pôr o som na minha frequência muda e retomar a leitura.

Voam dois chapéus de sol, mas nem dei pelo vento. Fui de novo à água.

Já ao final da tarde, constato que a praia está mais vazia. Aqui e ali joga-se à bola e vejo, ao meu lado, um embrulho de Calipo e um pedaço de película de embrulho de sandes. Olho melhor e encontro mais duas garrafas de água na areia. Reparo que há oito caixotes do lixo atrás de nós e vem-me à cabeça a polémica recente sobre o currículo de cidadania. Lembro-me das aulas de Ciências Sociais que tive em 1976 e de um livro de Dragomir Knapic, que continha imagens de petroleiros a derramar petróleo nos mares e que me deixavam a pensar. Penso em cinquenta anos de educação ambiental e no lixo que estava naquela praia. Muito lixo mesmo.

As pessoas estendem a toalha em cima de lixo, lixo. A praia estava mesmo imunda: uma fralda no paredão…

Penso outra vez nas aulas de cidadania, na reciclagem e na educação ambiental… (E eu que até creio no potencial transformador da escola.)
Três R: Reduzir, Reutilizar, Reciclar… Percebo que já não sei quantos são. Há uns tempos ouvi quatro R: Reduzir, Reutilizar, Reciclar e Recusar. Acho que já há cinco! Deve ser daí que vem esta confusão na praia, penso eu…

Vou a um café e peço uma Coca-Cola Zero, com gelo. Dizem-me que não há gelo. Peço, em alternativa, uma água com gás com sabores.

Perguntam-me que sabor quero. Digo limão. Trazem-me, com enfado, água de sabor a framboesa e outra de um sabor qualquer. Digo que prefiro então a Coca-Cola Zero, sem gelo.

Dizem-me que não há Coca-Cola e perguntam se pode ser uma Pepsi. Respondo que sim…

A menina que me trouxe as águas desinteressa-se de mim, pois lhe dá trabalho andar para lá e para cá. Diz à outra menina: “O que é que ele quer?”

Vem a Pepsi.

Não é Zero! Digo até que pode ser uma cerveja.

A outra menina do balcão traz-me uma Coca-Cola Zero, sem gelo, e eu peço desculpa pelo trabalho. Quem está comigo repreende-me: quem tem de pedir desculpas é uma das meninas…

Abro o meu telemóvel… Uma story mostrava três casamentos e três lutas entre noivos relacionadas com a abertura do bolo de noiva impedindo que todos os presentes vivessem um momento de verdadeira comunhão e partilha da alegria dos noives, partilhando um bolo significativo em comum. Noutro discutia-se um artigo do Expresso que só podia ser lido pelos assinantes ou subscritores do Jornal. Deste modo, discutia-se a partir do destaque sem conhecer o texto... Noutro ainda discutia-se acaloradamente qualquer coisa de que já nem me lembro — a espuma dos dias. Desligo o telemóvel. Olho ao lado e duas pessoas filmam comida e pergunto-me: para quê?

Vou para o carro e ainda está gente na praia. Está já lusco-fusco. A maré estava mesmo a descer e ainda se tomava banho. Ondas mais baixas e os inevitáveis telemóveis a filmar sei lá o quê, pois o pôr-do-sol já tinha sido. 

Chego ao carro e há fila para pagar na máquina. Aguardo respeitosamente… 1,20 euros. Pago.

A água nem estava má.

1905 - (da consciência de existir) O uso do telemóvel e a perda da experiência ao vivo

  Há u m gesto que se tornou quase inevitável em qualquer espetáculo ao vivo: o erguer do telemóvel. No caso de um concerto em sala de espet...