Chuva Oblíqua 
V 
Lá fora vai um redemoinho de sol os cavalos do carroussel...              
            Árvores, pedras, montes, bailam parados dentro de mim... 
            Noite absoluta na feira iluminada, luar no dia de sol lá fora,              
            E as luzes todas da feira fazem ruídos dos muros do quintal...              
            Ranchos de raparigas de bilha à cabeça 
            Que passam lá fora, cheias de estar sob o sol, 
            Cruzam-se com grandes grupos peganhentos de gente que anda na feira,              
            Gente toda misturada com as luzes das barracas, com a noite e com             o luar, 
E os dois grupos encontram-se e penetram-se 
            Até formarem só um que é os dois... 
            A feira e as luzes das feiras e a gente que anda na feira, 
            E a noite que pega na feira e a levanta no ar, 
            Andam por cima das copas das árvores cheias de sol, 
            Andam visivelmente por baixo dos penedos que luzem ao sol, 
            Aparecem do outro lado das bilhas que as raparigas levam à             cabeça, 
            E toda esta paisagem de primavera é a lua sobre a feira, 
            E toda a feira com ruídos e luzes é o chão deste             dia de sol... 
De repente alguém sacode esta hora dupla como numa peneira              
            E, misturado, o pó das duas realidades cai 
            Sobre as minhas mãos cheias de desenhos de portos 
            Com grandes naus que se vão e não pensam em voltar...              
            Pó de oiro branco e negro sobre os meus dedos... 
            As minhas mãos são os passos daquela rapariga que abandona             a feira, 
            Sozinha e contente como o dia de hoje.. 
VI 
O maestro sacode a batuta, 
            E lânguida e triste a música rompe... Lembra-me a minha             infância, aquele dia 
            Em que eu brincava ao pé de um muro de quintal 
            Atirando-lhe com uma bola que tinha dum lado 
            O deslizar dum cão verde, e do outro lado 
            Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo... 
Prossegue a música, e eis na minha infância 
            De repente entre mim e o maestro, muro branco, 
            Vai e vem a bola, ora um cão verde, 
            Ora um cavalo azul com um jockey amarelo... 
Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância 
            Está em todos os lugares, e a bola vem a tocar música,              
            Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal 
            Vestida de cão tornando-se jockey amarelo... 
            (Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...)            
Atiro-a de encontro à minha infância e ela 
            Atravessa o teatro todo que está aos meus pés 
            A brincar com um jockey amarelo e um cão verde 
            E um cavalo azul que aparece por cima do muro 
            Do meu quintal... E a música atira com bolas 
            À minha infância... E o muro do quintal é feito             de gestos 
            De batuta e rotações confusas de cães verdes              
            E cavalos azuis e jockeys amarelos... 
Todo o teatro é um muro branco de música 
            Por onde um cão verde corre atrás de minha saudade 
            Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo... 
E dum lado para o outro, da direita para a esquerda, 
            Donde há arvores e entre os ramos ao pé da copa 
            Com orquestras a tocar música, 
            Para onde há filas de bolas na loja onde comprei 
            E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância...            
E a música cessa como um muro que desaba, 
            A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos, 
            E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se preto,              
            Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro, 
            E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça,              
            Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo... 
Fernando Pessoa [8-3-1914]
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