MAR ABSOLUTO
Em português o vento vem do mar
vem a doce vogal e o silvo agreste
o ritmo e o tom da escrita e do falar
e o poema onde bate o vento oeste.
Auroras e crepúsculos e a linha
onde a curva da terra se pressente
e certas tarde mágicas na minha
língua virada a sul e a ocidente.
Mar invisível sobre o mar visível
mar que me bate em todos os meus músculos
e às vezes traz às praias do dizível
a música e a melancolia dos crepúsculos.
Mar que brame na tristeza
fica por dentro a flor da espuma
e a vela branca a envolver a mesa
onde um poeta escreve entre uma ode e a bruma.
Azul e branco de Melville. Deus e o Diabo.
Em cada página a baleia. A festa e o luto.
E depois do canal outro canal. Dobrar o cabo
ao sol do mar absoluto.
Venha até mim o mar venha até mim
o mar que foi e o que há-de ser e é pai e mãe
venha até mim o mar princípio e fim
o mar que mesmo aqui é mais além.
E de repente tudo fica incerto
tocaram à campainha e a letra está tremida
agora a página é um areal deserto
e vem do mar uma canção perdida.
É então que o mar bate mais forte: o mar de dentro
sobre o plexo solar a onda treme
navegador da alma eu estou no centro
de um navio fantasma sem ninguém ao leme
E agora mais atento uns versos adiante
eu vejo as doze naus de Ulisses ou talvez
a vida toda nesse breve instante
em que disseste mar pela primeira vez.
Doze proas pintadas de vermelho
no meio das negras naus do Almirante
Aquiles sentado as mãos sobre o joelho
não tardará não tardará que se levante.
Não me venham dizer que o mar não dá sinal
no mar já navegado há um mar que ninguém leu
mesmo que a página seja um areal
onde um rei está caído. Ou um país. Ou talvez eu.
Um peso em mim: a História foi demais.
País do mar. Agora outrora.
E todos os navios a sair do cais
para outro espaço outro crepúsculo outra aurora.
Por isso diz-se mar e é um destino.
Ou memória que dói. O Mundo. Este que sou.
O marinheiro volta a ser menino
mas o que ele buscava naufragou
Ainda que haja mar e sete mares
e um outro azul no espaço onde disponho
o mapa de outro longe e outros lugares
e o poema de outro sul e de outro sonho
E eis que de súbito há uma nau capitana
pela página dentro. E sou Bartolomeu
sou a índia perdida e a saga lusitana.
Um barco na memória. Esse barco sou eu.
Sou aquele que partiu e o que não foi.
Sou o que lembra e o que se esquece. Um rastro
no caminho. Um rastro. E mar que dói.
Sou o último gajeiro no topo do mastro.
Sou o que busca a palavra onde se esconde
uma pergunta sem resposta. Sou esse navegar.
Sou o que procura mesmo se ninguém responde
e sou o que pergunta pelo mar.
Lisboa, 1 a 4 de Setembro de 2002
Manuel Alegre
Em português o vento vem do mar
vem a doce vogal e o silvo agreste
o ritmo e o tom da escrita e do falar
e o poema onde bate o vento oeste.
Auroras e crepúsculos e a linha
onde a curva da terra se pressente
e certas tarde mágicas na minha
língua virada a sul e a ocidente.
Mar invisível sobre o mar visível
mar que me bate em todos os meus músculos
e às vezes traz às praias do dizível
a música e a melancolia dos crepúsculos.
Mar que brame na tristeza
fica por dentro a flor da espuma
e a vela branca a envolver a mesa
onde um poeta escreve entre uma ode e a bruma.
Azul e branco de Melville. Deus e o Diabo.
Em cada página a baleia. A festa e o luto.
E depois do canal outro canal. Dobrar o cabo
ao sol do mar absoluto.
Venha até mim o mar venha até mim
o mar que foi e o que há-de ser e é pai e mãe
venha até mim o mar princípio e fim
o mar que mesmo aqui é mais além.
E de repente tudo fica incerto
tocaram à campainha e a letra está tremida
agora a página é um areal deserto
e vem do mar uma canção perdida.
É então que o mar bate mais forte: o mar de dentro
sobre o plexo solar a onda treme
navegador da alma eu estou no centro
de um navio fantasma sem ninguém ao leme
E agora mais atento uns versos adiante
eu vejo as doze naus de Ulisses ou talvez
a vida toda nesse breve instante
em que disseste mar pela primeira vez.
Doze proas pintadas de vermelho
no meio das negras naus do Almirante
Aquiles sentado as mãos sobre o joelho
não tardará não tardará que se levante.
Não me venham dizer que o mar não dá sinal
no mar já navegado há um mar que ninguém leu
mesmo que a página seja um areal
onde um rei está caído. Ou um país. Ou talvez eu.
Um peso em mim: a História foi demais.
País do mar. Agora outrora.
E todos os navios a sair do cais
para outro espaço outro crepúsculo outra aurora.
Por isso diz-se mar e é um destino.
Ou memória que dói. O Mundo. Este que sou.
O marinheiro volta a ser menino
mas o que ele buscava naufragou
Ainda que haja mar e sete mares
e um outro azul no espaço onde disponho
o mapa de outro longe e outros lugares
e o poema de outro sul e de outro sonho
E eis que de súbito há uma nau capitana
pela página dentro. E sou Bartolomeu
sou a índia perdida e a saga lusitana.
Um barco na memória. Esse barco sou eu.
Sou aquele que partiu e o que não foi.
Sou o que lembra e o que se esquece. Um rastro
no caminho. Um rastro. E mar que dói.
Sou o último gajeiro no topo do mastro.
Sou o que busca a palavra onde se esconde
uma pergunta sem resposta. Sou esse navegar.
Sou o que procura mesmo se ninguém responde
e sou o que pergunta pelo mar.
Lisboa, 1 a 4 de Setembro de 2002
Manuel Alegre