sábado, 13 de junho de 2009

836 - Kronos devora os seus filhos


Tick-tack] 1ª ecografia. Quantas vezes bateu o meu coração até ver o sol [tick] e a lua [tack]? Quarto minguante, 23:07 [tack][Tick] Dizem que aparento ter a idade que tenho mas sinto-me velho. As horas estão gastas, todos os dias há 7 horas, há 17 horas, há 20 horas.

[Tick-tack] O som que nos desperta os sentidos [tick] 7 horas, manhã de nevoeiro. Quantas vezes teria pestanejado se não tivesse dormido? Talvez aguente 10 segundos sem pestanejar.

[tack] O tempo não pára enquanto dormimos, [tick-tack] dentro de nós o pulsar para nos lembrar. [tick] 7 horas, levantar.Olho ao espelho. Escovar os dentes, lavar o rosto. Tenho 30 minutos para sair de casa. [tick-tack] Quantas vezes inspiro e expiro em 30 minutos? [Tick-tack] Inspiro-expiro num movimento bipolar, para fora [tick] - para dentro [tack]. O coração a pulsar.

Uma competição bestial e diária, cada gesto em sintonia, numa sinfonia pendular. Hoje venci. Talvez tenha inspirado com mais força e expirado menos vezes. Um dia, se parar de respirar talvez vença o tempo.

Tenho 5 minutos de avanço 7:25 [tick]

IC 19 - 7:45 [tack] Os 5 minutos de avanço rapidamente foram devorados. Estes minutos na estrada, cinzentos. [tick] Aquele desespero de ver o tempo lá à frente a quilómetros de distância, e uma multidão parada, que paradoxalmente se move sem sair do mesmo sitio…parada. [tick-tack] O caos a caminhar para um amanhã exactamente igual à de hoje, de horas gastas, no mesmo sítio, talvez mais cinzento.

Chego ao trabalho. 8:10 [tick] Sou uma espécie de roda dentada, que encaixa na perfeição numa outra e por sua vez numa outra. Um mecanismo que começa lentamente a girar [tick-tack] e outro pêndulo começa a andar. Nesta cinética laboral passamos a maior parte das horas todas que levamos a pestanejar.

17:00 [tick-tack] Estou cansado, apetecia-me fechar os olhos. [tick] Fila para picar o ponto.

[tack] Fila para voltar para casa. Tanta gente. Renques de gente todos os dias no mesmo caminho, [tick-tack] a impedirem o caminho uns dos outros. Estradas estranguladas de gente. Pouca terra. Pouca terra… Tenho esta imagem repetida vezes sem conta nesta caderneta da vida. Posso trocar? O céu devia estar mais perto. É preciso muito ar para este amontoado de gente: “massa” humana.
17:45 [tick] Com um pouco de sorte arranjo lugar à porta de casa e assim agora [tick-tack] deixa de ser igual ao agora de ontem, mas não muito diferente dos outros dias.

18:00 [tack] Ando no sentido inverso aos ponteiros do relógio, num carrossel alegórico que me deixa tonto. Depois disto já terei fumado talvez 5 cigarros. Tenho que sentir que
devoro qualquer coisa mais depressa que o tempo. Sem a minha ajuda estes cigarros não queimavam tão depressa. Para além disso estou deprimido. Vou comprar mais um maço.[Tick-tack] 18:15 O elevador continua avariado, não me lembro há quanto tempo. Confundo os dias, para além disso pensar no passado faz-me perder tempo.

[Tick] A tecnologia permite-nos uma maravilhosa ilusão. Posso gravar as noticias das 13:00 e vê-las às 18:30. “Veja agora o que não teve tempo de ver antes”. [tick-tack] Estou sentado na poltrona 18:40 [tack] a ver o noticiário das 13:00 Não tenho tempo e estou demasiado cansado. A diversidade das comidas já prontas chega-me. 3 minutos no microondas. Quantas vezes gira o prato das almôndegas lá dentro? Ao fim de 2 minutos já se ouvem estalidos.

Tick-tack] Ainda tenho tempo para queimar mais alguns cigarros enquanto vejo o jornal da noite, que é o mesmo de ontem, com mais alguns mortos, mais alguns feridos, mais umas discussões no parlamento. De resto, tudo mudou para ficar na mesma. Dão subida de temperatura para amanhã e mais 15 minutos de publicidade. Talvez anunciem um novo prato de comida pronta.

[Tick-tack] Não gosto de novelas, nem costumo ver, mas sempre quis ir à índia, até porque nunca estamos bem onde estamos, e assim viaja-se na poltrona e mete-se a par umas cusquices. Agora vejo esta, mas mais nenhuma.
[Tack] Deitar, parar de pestanejar. O pêndulo sem parar. Sinto-me cansado destas horas gastas.

Somos devorados pelo tempo.
7:00 [tick]
14:00 [tack]
[Tick-tack] Aqui, agora!... Espaço ao cubo. O tempo a passar, um tempo a viver.
[Tick-tack]…


José d’ Almeida & Maria Flores

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De 3 de Junho a 3 de Julho, o Espaço3 (espaço ao cubo) recebe a obra “Kronos devora os seus filhos” dos artistas José d’Almeida e Maria Flores. Esta instalação com projecção vídeo, patente no Alegro Alfragide, faz-nos reflectir sobre o que fazemos com o nosso tempo.

“Kronos devora os seus filhos” ilustra o dia-a-dia frenético, o passar do tempo, as estradas estranguladas de carros, o cansaço, pessoas amontoadas em transportes furiosas pela demora, o amontoado de pessoas, os ponteiros do relógio que incentivam a nossa inércia e quase matam a nossa vontade com dias uns iguais aos outros.

O título da exposição remete-nos para a história de uma personagem da mitologia grega, Cronos, que teve seis filhos com a sua irmã Réia.
Com medo de ser destronado, Cronos engolia os filhos ao nascerem, tendo sido Zeus o único que se salvou.
E é realmente verdade. Se não paramos um pouco somos inexoravelmente tragados pelo voraz Tempo que comanda a nossa vida. Logo a reflexão impõe-se, até porque o nosso Tempo é curto e muito há para descobrir na Vida que esse tempo pretende arrancar-nos.

A obra é da autoria de José D’ Almeida e Maria Flores ambos com currículo e reconhecimento criativo no universo das artes, nomeadamente na vertente da fotografia.
Ela por talento e formação académica e ele por vocação na área das artes gráficas e pela devoção pela expressão plástica.

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