quinta-feira, 22 de novembro de 2018

1891 (das palavras) - A festa do silêncio

A Festa do Silêncio
Escuto na palavra a festa do silêncio.
Tudo está no seu sítio. As aparências apagaram-se.
As coisas vacilam tão próximas de si mesmas.
Concentram-se, dilatam-se as ondas silenciosas.
É o vazio ou o cimo? É um pomar de espuma.
Uma criança brinca nas dunas, o tempo acaricia,
o ar prolonga. A brancura é o caminho.
Surpresa e não surpresa: a simples respiração.
Relações, variações, nada mais. Nada se cria.
Vamos e vimos. Algo inunda, incendeia, recomeça.
Nada é inacessível no silêncio ou no poema.
É aqui a abóbada transparente, o vento principia.
No centro do dia há uma fonte de água clara.
Se digo árvore a árvore em mim respira.
Vivo na delícia nua da inocência aberta.
António Ramos Rosa, in "Volante Verde"

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

1889 (do amor) - O teu riso

O Teu Riso

Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas não
me tires o teu riso.

Não me tires a rosa,
a lança que desfolhas,
a água que de súbito
brota da tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.

A minha luta é dura e regresso
com os olhos cansados
às vezes por ver
que a terra não muda,
mas ao entrar teu riso
sobe ao céu a procurar-me
e abre-me todas
as portas da vida.

Meu amor, nos momentos
mais escuros solta
o teu riso e se de súbito
vires que o meu sangue mancha
as pedras da rua,
ri, porque o teu riso
será para as minhas mãos
como uma espada fresca.

À beira do mar, no outono,
teu riso deve erguer
sua cascata de espuma,
e na primavera, amor,
quero teu riso como
a flor que esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.

Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
tortas da ilha,
ri-te deste grosseiro
rapaz que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando meus passos vão,
quando voltam meus passos,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria.


Pablo Neruda 

domingo, 11 de novembro de 2018

1888 (Do espanto de viver) - Carpe Diem

Carpe Diem
Aproveita o dia,
Não deixes que termine sem teres crescido um pouco.
Sem teres sido feliz, sem teres alimentado teus sonhos.
Não te deixes vencer pelo desalento.
Não permitas que alguém te negue o direito de expressar-te, que é quase um dever.
Não abandones tua ânsia de fazer de tua vida algo extraordinário.
Não deixes de crer que as palavras e as poesias sim podem mudar o mundo.
Porque passe o que passar, nossa essência continuará intacta.
Somos seres humanos cheios de paixão.
A vida é deserto e oásis.
Nos derruba, nos lastima, nos ensina, nos converte em protagonistas de nossa própria história.
Ainda que o vento sopre contra, a poderosa obra continua, tu podes trocar uma estrofe.
Não deixes nunca de sonhar, porque só nos sonhos pode ser livre o homem.
Não caias no pior dos erros: o silêncio.
A maioria vive num silêncio espantoso. Não te resignes, e nem fujas.
Valorize a beleza das coisas simples, se pode fazer poesia bela, sobre as pequenas coisas.
Não atraiçoes tuas crenças.
Todos necessitamos de aceitação, mas não podemos remar contra nós mesmos.
Isso transforma a vida em um inferno.
Desfruta o pânico que provoca ter a vida toda a diante.
Procures vivê-la intensamente sem mediocridades.
Pensa que em ti está o futuro, e encara a tarefa com orgulho e sem medo.
Aprendes com quem pode ensinar-te as experiências daqueles que nos precederam.
Não permitas que a vida se passe sem teres vivido…

Walter Whitman (1819 – 1892)

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

1887 (das palavras) - As Palavras de Amor

As Palavras de Amor

Esqueçamos as palavras, as palavras: 
As ternas, caprichosas, violentas, 
As suaves de mel, as obscenas, 
As de febre, as famintas e sedentas. 

Deixemos que o silêncio dê sentido 
Ao pulsar do meu sangue no teu ventre: 
Que palavra ou discurso poderia 
Dizer amar na língua da semente? 

José Saramago, in "Finalmente Alegria" 

terça-feira, 6 de novembro de 2018

1886 (das palavras) - Segunda nota explicativa

Segunda Nota Explicativa


Se uma palavra toca noutra ou mesmo sem tocar 
lhe queda próxima, põem-se as duas 
a dedilhar lembranças na ária 
da carne azada. 

Passa-se isto 
na poesia dos poetas e na linguagem 
da rua. Os ganhos 
são mútuos e ficam mal lembrados 

ou julgados inconvenientes se 
pouco prosados ultrapassam 
a discreta função de fundo 
musical na paisagem ambiente. 

Ganham em sentidos o que perdem 
em concisão. Para que servem os muros 
que nos cercam senão para dar ganas 
de os saldar? 

Júlio Pomar, in "TRATAdoDITOeFEITO" 

sábado, 3 de novembro de 2018

1885 (das palavras) - A palavra

A PALAVRA


A palavra renova-se no poema.
Ganha cor,
ganha corpo,
ganha mensagem.

A palavra no poema não é estática,
pois, inteira e nua se assume
no perfeito,
no perpétuo movimento
da incógnita que a adoça.

A palavra madura é espectáculo.
Canta.
Vive.
E respira. Para tudo isso
basta
uma mão inteligente que a trabalhe,
lhe dê a dimensão do necessário
e do sentido
e lhe amaine sobre o dorso
o animal que nela dorme destemido.

A palavra é ave
migratória,
é cabo de enxada,
é fuzil, é torno de operário,
a palavra é ferida que sangra,
é navalha que mata,
é sonho que se dissipa,
visão de vidente.

A palavra é assim tantas vezes
dia claro
sinal de paisagem
e por isso é que à palavra se dá,
inteiramente,
um bom poeta
com os seus sonhos,
com os seus fantasmas,
com os seus medos 
e as suas coragens,
porque é na palavra que muitas vezes está,
perdido ou escondido,
o outro homem que no poeta reside.

Eduardo White

[314]

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

1884 (das palavras) - Há palavras que nos beijam



Há Palavras que Nos Beijam

Há palavras que nos beijam 
Como se tivessem boca. 
Palavras de amor, de esperança, 
De imenso amor, de esperança louca. 

Palavras nuas que beijas 
Quando a noite perde o rosto; 
Palavras que se recusam 
Aos muros do teu desgosto. 

De repente coloridas 
Entre palavras sem cor, 
Esperadas inesperadas 
Como a poesia ou o amor. 

(O nome de quem se ama 
Letra a letra revelado 
No mármore distraído 
No papel abandonado) 

Palavras que nos transportam 
Aonde a noite é mais forte, 
Ao silêncio dos amantes 
Abraçados contra a morte. 

Alexandre O'Neill, in 'No Reino da Dinamarca' 

1902 (da resiliência) - Do que um homem é capaz

Do que um homem é capaz? As coisas que ele faz Pra chegar aonde quer É capaz de dar a vida Pra levar de vencida Uma razão de viver A vida é ...