sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

1895 (do regresso à infância) - Quero só isso nem isso quero

QUERO SÓ ISSO NEM ISSO QUERO


Quero uma mesa e pão sobre essa mesa
na toalha de linho nódoas de vinho
quero só isso nem isso quero

Quero a casa de terra à minha volta
cães altos na noite a minha mãe mais nova
quero só isso nem isso quero

Quero a casa do forno onde eu me escondia dos relâmpagos
e trovões quando um ferro no cesto garantia uma feliz cria à galinha chocadeira
quero só isso nem isso quero

Quero de novo fundir ao lume os soldados de chumbo que no natal me punham no sapatinho
e tirar chouriço e toucinho do guarda-comidas
quero só isso nem isso quero

Quero fazer pequeninos adobes e construir casas pelo quintal
ver chegar o verão e comermos todos lá fora na varanda de tijolo
quero só isso nem isso quero

Quero uma aldeia umas pedras um rio
umas quantas mulheres de joelhos brancos esfregando a roupa nas pedras
quero só isso nem isso quero

Quero escrever fatais cartas de amor à rapariga dos meus oito anos
rasgar essas cartas deixá-las pra sempre dentro do tronco oco da oliveira
quero só isso nem isso quero

Quero umas cabras um pastor rico um pastor pobre
o leite quente na teta o cabrito morto soprado e esfolado
quero só isso nem isso quero

Quero a courela as perdizes no ovo a baba do cuco
laranjas de orvalho no ano novo colhidas na árvore
quero só isso nem isso quero

Quero dois montes e um paul de malmequeres a cheia na primavera
a asma o ruído dos ralos as pernas sombrias das raparigas
quero só isso nem isso quero

Quero os espargos os pinheiros bravos o primeiro pôr-do-sol
as noites de baile no carnaval as bandeiras da safra
quero só isso nem isso quero

Quero que voltem os que morreram os que emigraram
matar com eles o bicho com aguardente pela manhã antes da pega
quero só isso nem isso quero

Quero ver ao vento o véu das noivas apanhar os confeitos nos casamentos
saber pelos papéis dos registos o tempo da prenhez palavra misteriosa
quero só isso nem isso quero

Quero um páteo meu e da sombra e galinhas pedreses e árvores
uma mina de avencas uma horta uma sebe de cana umas casas caídas
quero só isso nem isso quero

Quero uma enxada uma gadanha calos nas mãos cuspo nos calos
a cava mais funda da vinha o capataz a fazer o vinho correr
quero só isso nem isso quero

Quero ajudar na rega do fim da tarde calcar os buracos das toupeiras
e dirigir com o sacho a água morna nos pés até aos regos do feijão
quero só isso nem isso quero

Quero em dezembro o varejo final da azeitona o búzio a tocar
a azeitona a cair dos ramos nos panos de serapilheira
quero só isso nem isso quero

Quero o meu pai de chapéu de chuva aberto nos dias de sol
o meu pai de manhãzinha a lavar-se e a explicar-nos latim e história
quero só isso nem isso quero

Quero nu em pelota entre todos tomar os banhos no marachão
os ninhos dos pássaros as andorinhas de asas escuras no céu azul
quero só isso nem isso quero

Quero o pátio da escola a roda das raparigas a cantar à volta do plátano
o primeiro sonho de amor as primeiras palavras gaguejadas trocadas com uma rapariga
quero só isso nem isso quero 

Quero as feridas nos pés para poder sair à rua descalço
o pão com conduto entre os meninos pobres no recreio
quero só isso nem isso quero

Quero ir ao vale barco a malaquejo à marmeleira
roubar melões jogar ao murro ver nas festas o fogo preso
quero só isso nem isso quero

Que quero tanto que quero um mundo ou nem tanto só agora reparo
quero morder para sempre a almofada quente e densa da terra
quero só isso nem isso quero


Ruy Belo, de Toda a Terra (1976), 

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

1894 (Contra a acomodação) - Morte ao meio-dia / Ruy Belo



Morte ao Meio-Dia


No meu país não acontece nada
à terra vai-se pela estrada em frente
Novembro é quanta cor o céu consente
às casas com que o frio abre a praça

Dezembro vibra vidros brande as folhas
a brisa sopra e corre e varre o adro menos mal
que o mais zeloso varredor municipal
Mas que fazer de toda esta cor azul

Que cobre os campos neste meu país do sul?
A gente é previdente cala-se e mais nada
A boca é pra comer e pra trazer fechada
o único caminho é direito ao sol

No meu país não acontece nada
o corpo curva ao peso de uma alma que não sente
Todos temos janela para o mar voltada
o fisco vela e a palavra era para toda a gente

E juntam-se na casa portuguesa
a saudade e o transístor sob o céu azul
A indústria prospera e fazem-se ao abrigo
da velha lei mental pastilhas de mentol

Morre-se a ocidente como o sol à tarde
Cai a sirene sob o sol a pino
Da inspecção do rosto o próprio olhar nos arde
Nesta orla costeira qual de nós foi um dia menino?

Há neste mundo seres para quem
a vida não contém contentamento
E a nação faz um apelo à mãe,
atenta a gravidade do momento

O meu país é o que o mar não quer
é o pescador cuspido à praia à luz
pois a areia cresceu e a gente em vão requer
curvada o que de fronte erguida já lhe pertencia

A minha terra é uma grande estrada
que põe a pedra entre o homem e a mulher
O homem vende a vida e verga sob a enxada
O meu país é o que o mar não quer

Ruy Belo
in *Boca Bilingue(1966)

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

1893 (da consciência de si) - António: ou esse gajo e eu

António: ou esse gajo e eu

Para que estou eu aqui a faalr sobre este gajo
que ninguém sabe quem foi
perdeu uma batalha em Alcântara
(embora eu que estive lá ache que não)
Um gajo que já vinha de Alcácer Quibir
filho de filho de rei e de uma judia
um gajo que o pvo queria e que por isso
ninguém denunciou durante os meses
em que andou escondido de casa em casa
um gajo que partou para o exílio
rei e não rei
levando anéis para comprar apoios
até ficar só com os dedos.
Um gajo que foi símbolo de um país que já não era
tão azarado que depois de tanto esforço
ao chegar a Peniche em uma armada
viu Drake piratear os portugueses
a peste matar um terço dos soldads
e depois ao seguir para Lisboa
não teve povo levantado
teve sorrisos acenos caras fechadas.
O povo já não é o mesmo
disse alguém.
Era e não era. Queria e não queria
um dia pronto a morrer no outro nem por isso.
Um gajo que mesmo assim não desistiu
nem deixou de ser o rei que só não tinha
Estado
e se calhar ainda bem
assim ao menos pode ser poema.
Porque estou a falar de tudo isto?
Talvez sem querer esteja a falar de mim
e dos que sonharam como Sena
outro país
exilados de fora
exilados de dentro
a si mesmo se pondo em causa
porque só desse modo pode amar-se a pátria
como a si mesmo talvez se interrogasse o gajo
que só a sós consigo foi António Rei
quase poder quase tudo quase ninguém
como o país que dentro dele se perdeu .
Escrebo porque esse gajo
também sou eu.

Manuel Alegre

domingo, 9 de dezembro de 2018

1892 (Da justiça) - Fala de Alcântara e depois

Fala de Alcântara e depois



Era um resto de cavalaria
quantos ao certo não sei
o que sobrou de Alcácer-Quibir
um resto
por seu reino e por seu rei.

Dois flancos dois frágeis terríveis flancos.
À primeira investida
levaram de vencida os invasores
era um resto de cavalaria
e povo mal armado.
Então o Duque de Alba carregou
trazia o exército mais forte da Europa
contra o que de nós ainda restava
cavaleiros sem cavalo
lavradores taberneiros sapateiros
fanqueiros mendigos chulos
putas
facas ancinhos foices pedras mãos
palavras palavrões
a língua portuguesa
o corpo e a alma
Alcântara e depois
Lisboa bairro a bairro rua a rua
por seu reino e por seu rei
quantos ao certo não sei
defendiam uma bandeira rota
além da morte além do fim.

Quando é assim
não há derrota

Manuel Alegre, em "Auto de António"

1902 (da resiliência) - Do que um homem é capaz

Do que um homem é capaz? As coisas que ele faz Pra chegar aonde quer É capaz de dar a vida Pra levar de vencida Uma razão de viver A vida é ...