quinta-feira, 7 de julho de 2011

O caçador de tesouros

O Caçador de Tesouros de J.M.G Le Clezio. 

Prémio Nobel de Literatura 2008

Edição da Assírio & Alvim, traduzido por Ernesto Sampaio

 

Eis a minha última leitura!  

Eis uma narrativa, que nos prende desde o primeiro parágrafo:

1892
"Sempre me lembro de ter ouvido o mar. De mistura com o vento nas folhas das palmeiras bravas, um vento que nunca deixa de soprar, mesmo quando nos afastamos da costa e avançamos canaviais adentro: é o ruído de fundo que acompanhou a minha infância. Ouço-o agora, no mais íntimo de mim, e levo-o comigo para onde quer que vá. O marulho lento, incansável, das ondas que se quebram ao longe na barra de coral e depois vêm morrer na areia do Rio Negro. Não passa um dia sem que vá ao mar, nem uma noite sem acordar com as costas alagadas em suor, soerguido na minha cama de campanha, afastando o mosquiteiro e procurando avaliar a altura da maré, inquieto, tomado dum desejo que não compreendo.
Na escuridão, penso no mar como se fosse uma pessoa humana, com todos os sentidos despertos para melhor o ouvir chegar, para melhor o receber. As vagas gigantescas cavalgam os recifes, vêm desabar na laguna e o estouro faz vibrar a terra e o ar como um caldeirão. Ouço-o, o mar mexe-se, respira. [...]
O mar está dentro da minha cabeça, e é ao fechar os olhos que melhor o vejo e ouço, que consigo distinguir cada ribombo das vagas separadas pelos recifes e logo de novo unidas para virem quebrar-se na costa. [...]
Nada existe mais, nada a não ser o que sinto, o que vejo, o céu tão azul, o estrondo do mar a lutar com os recifes e a água fria que me escorre na pele. [...]
Abro os olhos e vejo o mar. Não o mar cor de esmeralda que via outrora nas lagunas, nem a água escura diante do estuário do Tamarindo. É o mar como ainda não tinha visto, livre, selvagem, dum azul inebriante, o mar que levanta o casco do navio, lentamente, vaga após vaga, ente sulcos de espuma percorridos por centelhas. [...]
Agora sei onde estou. Encontrei o lugar que procurava. Após estes meses de vagabundagem, sinto uma nova paz e um novo ardor."

Fica-se preso, como numa teia, à procura do tesouro, que se vai descobrindo página a página, em cada descrição ou episódio da narrativa. 
Le Clezio escreve, sempre com o mar em fundo, omnipresente, como um personagem secundário que afinal é principal. O mar que sai de dentro do narrador (estamos avisados desde o primeiro parágrafo, de resto), porque se percebe o grau de intimidade deste com a água salgada. 
 
O Caçador de Tesouros, peregrino incansável do mundo, dá-nos uma fatia da sua vida, faz-nos ver com os seus olhos tudo aquilo que vê: a “árvore do bem e do mal”, os montes, as pedras, os campos, enfim, toda uma paisagem que se estende perante os seus olhos, e também perante os nossos. Como elemento central de adoração e culto está o mar: o seu irresistível chamamento, a vida que encerra em si, a rebeldia que nos fascina e amedronta. 
O Caçador de Tesouros viaja e relembra o mar, do qual não pode estar longe, pois ele é parte indissociável da sua vida. Não se trata apenas de um passeio à beira-mar, na praia, no molhe batido pela vaga de Inverno, de dizer que se gosta do mar mesmo quando efectivamente se gosta; nada disso, aqui trata-se de água salgada misturada com sangue, a correr nas veias, linhas, parágrafos. E então tudo muda de figura, muda obviamente de figura. É um livro do mar. O mar preparou-nos este segredo, este tesouro. É disso que se trata!

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