terça-feira, 14 de dezembro de 2010

1235 - A trégua de Primo Levi

Apesar de andar numa fase de muito trabalho, comprei o livro na noite aderente Fnac e li-o quase de um só fôlego.

Trata-se de "a Trégua" de Primo Levi (Turim, 1919-87)

A trégua narra a longa e incrível viagem de volta para casa depois da libertação de Auschwitz e do fim da guerra (Ver mapa) . Numa Europa semi destruída, o autor e vários companheiros de estrada viajam sem destino pelo Leste até a URSS, premidos entre as ruínas da maior de todas as guerras e o absurdo da burocracia dos vencedores.

Afinal a libertação tão ansiada não conduziu ninguém logo de volta a casa

Deixo aqui um excerto do magnífico relato:

"A meio da manhã, a máquina rugiu, com um profunda e maravilhosa voz metálica, sacudiu-se toda, vomitou um fumo negro, os tirantes esticaram-se, e as rodas começaram a girar. Olhámos uns para os outros, quase desorientados. Tínhamos resistido, afinal de contas: tínhamos vencido. Após o ano de Lager, de sofrimento e de paciência; após a vaga de morte a seguir à Libertação; após o gelo e a fome e o desprezo e a arrogante companhia do grego; após as doenças e a miséria de Katowice; após as transferências insensatas, por que nos sentíamos condenados a errar eternamente através dos espaços russos, como inúteis astros apagados; após o ócio e a nostalgia acerba de Staryje Doroghi, estávamos de novo em subida, portanto, em viagem para cima, a caminho de casa. O tempo, ao cabo de dois anos de paralisia, readquirira vigor e valor, trabalhava novamente para nós, e isto punha fim ao torpor do longo estio, à ameaça do inverno próximo, e tornava-nos impacientes, ávidos de dias e de quilómetros.
Mas bem cedo, logo desde as primeiras horas de viagem, tivemos de perceber que a hora da impaciência não tinha ainda soado: aquele itinerário feliz perspectivava-se longo e laborioso e não isento de surpresas: uma pequena odisseia ferroviária dentro da nossa odisseia maior. Precisávamos ainda de muita paciência, em doses imprevisíveis: de outra paciência.

o nosso comboio tinha mais de meio quilómetro de comprimento; os vagões encontravam-se em mau estado, as linhas também, a velocidade era irrisória, não superior aos quarenta ou cinquenta quilómetros horários. A linha era de via única; eram poucas as estações que dispunham de uma derivação tão comprida que permitisse a paragem, muitas vezes o comboio tinha de ser separado em duas ou três partes, e empurrado para as linhas de estacionamento com manobras complicadas e lentíssimas, para permitir a passagem de outros comboios.
Não existiam autoridades a bordo, à excepção do maquinista e da escolta, constituída pelos sete soldados de dezoito anos que tinham vindo da Áustria para nos aprisionarem. Estes, embora armados até aos dentes, eram criaturas cândidas e bem-educadas, de espírito ingénuo e pacífico, vivos e despreocupados como colegiais em férias, e absolutamente privados de autoridade e de sentido prático. A cada paragem do comboio, víamo-los passear pela plataforma para cima e para baixo, com a parabellum a tiracolo e de ar feroz e oficioso. Davam-se ares de muita importância, como se escoltassem um transporte de perigosos bandidos, mas era tudo aparências: em breve nos apercebemos de que as suas inspecções se centravam cada vez mais nos dois vagões das famílias, a meio do comboio. Não eram atraídos pelas mulheres jovens, mas pela atmosfera vagamente doméstica que emanava daqueles aciganados lares ambulantes, e que talvez lhes recordasse a casa longínqua e a infância que praticamente só agora terminava"

2 comentários:

  1. Boa tarde, em que página do livro retirou esse excerto?

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  2. Viva:

    Página 193 e 194 (já perto do fim do livro!)

    Cumprimentos

    João P.

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