segunda-feira, 27 de abril de 2009

788 - Assim a modos de uma carta...



Contexto: O Rangel (meu irmão Brasileiro) colocou-me o seguinte desafio:

"João
Diga a um brasileiro qual o gosto, o sabor do 25 de Abril para os portugueses?
Valeu a pena?"


Aceitei-o, claro! o difícil será escrever...


A primeira coisa de que me lembrei foi do Poema de Jorge de Sena:



Não hei-de morrer sem saber
qual a cor da liberdade.
Eu não posso senão ser
desta terra em que nasci.
Embora ao mundo pertença
e sempre a verdade vença,
qual será ser livre aqui,
Não hei-de morrer sem saber.

Mas embora escondam tudo
e me queiram cego e mudo
Não hei-de morrer sem saber
Qual a cor da liberdade.
(Jorge de Sena, poesia II)


Meu Caro Rangel:
Tinha 10 anos quando se deu a revolução em Portugal. confesso que não tinha ainda sofrido na carne o que muitos sofreram: Fome, analfabetismo, a família destruída pela guerra, desempego, exílio. Por exemplo a clotilde teve uma experiência do Fascismo mais marcante. Eu não...
Sou filho de professores que tudo fizeram para que não nos faltasse nada a mim e aos meus irmãos. Sei que o meu pai por ser professor de contabilidade acumulava com um trabalho no sector privado que lhe permitia ganhar mais uns dinheiros para a casa. Sei que acabei por ser um privilegiado para a época. Não faltava comida, pudemos estudar ao contrário de uma larga percentagem que tinha de abandonar os estudos cedo

(nota: um destes dias tive acesso a umas estatísticas de 91. Repara 1991...Nessa altura a taxa de analfabetismo do país era de 15% para as mulheres e 10% para os homens!!! duas em cada três mulheres com mais de 70 anos não sabia ler nem escrever!!! podes confereir em
http://www.ine.pt/prodserv/destaque/d000516-3/hm90.pdf )

Ainda não tinha chegado a hora de irmos (eu e os meus irmãos) para a guerra nem de procurar emprego.

Lembro-me muito bem do 25 de Abril. Ía para a Escola e não cheguei a sair da rua. Uns populares mandaram-nos para casa por estar a haver uma revolução. Lembra-me como se fosse hoje de acompanhar na rádio todo o dia: Os comunicados, as marchas militares, as canções do Zeca Afonso e muitas outras que nunca tinha ouvido e me pareceram ter qualquer coisa de espacial e de diferente do que era hábito passar na rádio.... A rendição do Caetano e o primeiro notíciário às 20h.

Marcou-me sobremaneira o primeiro 1º de Maio em Liberdade. É dificílimo explicar. Todos, mas todos, saíram à rua nas cidades de cravo na mão e todos se cumprimentavam, abraçavam e se falavam. Foi absolutamente inesquecível

“Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo."
Sophia de Mello Breyner Andresen

Depois fui crescendo e compreendendo cada vez melhor tudo o que tinha acontecido. Os anos de 74/75/76 foram únicos e irrepetíveis. Pairava uma sensação de Liberdade, de utopia, da possibilidade de concretização de tudo, de uma certa ingenuidade... As primeiras eleições livres

Para mim, foram tempos de descoberta: de faltar às aulas para conversar com os amigos, das sessões culturais em que ouvia Sérgio Godinho e Zeca Afonso, do grupo de teatro, de jogar Xadrez, de ir para a outra margem do rio só para me maravilhar com a cidade...

Tudo nos era permitido e tudo vivi com a responsabilidade que um míudo com estas idades podia ter (e se fui responsável: a quem muito se dá, muito lhe é exigido) Sei que muito aprendi com as conversas que mantive com adultos, colegas e professores e se sou o que sou hoje a eles lhes devo.

...

Depois

...

Fui crescendo e o país também. Percebi que fui (sou) um privilegiado e que dos míudos que comigo iniciaram a escola só poucos chegaram à faculdade.
É com tristeza que vejo muitas promessas de Abril caírem por água abaixo: A gestão democrática das escolas, alguma censura está de volta, a liberdade de escrever e de dizer o que nos vai na alma (sabes que este governo já mandou processar 8 jornalistas?), a auto-censura, o desemprego, a saúde que alguns querem que seja só para alguns, a canalhice e pulhice tendo em vista o lucro fácil, a ideia do Homem objecto ao invés de par, o vale tudo para atingir os objectivos políticos e tanta, tanta coisa...

Valeu a pena? valeu pois, alguns passos atrás não são retrocesso e como diz o poema, depois de saber o sabor da liberdade não se fica o mesmo não é? Podem dobrar-me mas já ninguém me tira o gosto de a ter saboreado e saber que a "razão mesmo vencida não deixa de ser razão"

E depois há algo que nos faz ver que valeu a pena e que não se voltou à "estaca zero". Todos os anos, a 24 de Abril à noite, vou ao largo principal da cidade onde vivo e nela se realiza um evento ao ar livre: Até à meia-noite canta-se para a gerações mais velhas, depois ouve-se o discurso da presidente da Câmara, canta-se a Grândola, recebe-se um cravo e vê-se o fogo de artifício. Depois é tempo de música para os mais novos.

Acredita que todos os anos me comovo e que sinto o sopro da Liberdade a passar! nada disto era possível antes do 25 de Abril: Tanta gente junta, novos e velhos, sem necessidade de polícia a organizar a multidão , ouvem música e confraternizam juntos... assim... estamos juntos e bebemos a sensação de que tudo é ainda possível e que o lobo e o cordeiro podem passear juntos...

Valeu a pena?

Valeu sim! mesmo que um dia nos queiram roubar! terão muito mais dificuldade. Ninguém gosta de passar de cavalo para burro

Amigo Rangel:
Tenho que terminar, pois a carta já vai longa. Imagino que haja gente que te possa dar outros olhares melhores. Este é o meu!

Um destes dias completo o "retrato"

Um abraço

João P.
Adenda 1- Deixo-te com uma música muito popular por alturas de 74

"Aprende a nadar, companheiro
aprende a nadar, companheiro
Que a maré se vai levantar
que a maré se vai levantar
Que a liberdade está a passar por aqui
que a liberdade está a passar por aqui
que a liberdade está a passar por aqui
Maré alta
Maré alta
Maré alta"
Adenda 2 - Para que possas compreender algumas "sombras" e a necessidade de continuar a comemorar o 25 de Abril não vá acontecer que a memória falhe.
a) No dia 25, em Santa Comba Dão (terra de nascimento do ditator Salazar) foi comemorado o baptismo de um largo com o nome "Largo Salazar"- Houve festa, comida e bebida... Lê o jornal:
Então isto náo é uma provocação?
b) na Ilha da Madeira - Região autónoma portuguesa, não se comemora o 25 de Abril
Então isto não é uma provocação?

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