terça-feira, 30 de agosto de 2011

1394 - Chuva Distante

















Alguma vez pensaste no destino de todos os poemas que são escritos? Mas que nunca se deixa os outros lerem?
Talvez sejam demasiado íntimos e pessoais.
Talvez sejam apenas maus demais
Talvez o receio de uma emoção tão sincera poder ser considerada tosca, superficial, ridícula, pretensiosa, melosa, obsoleta, patética, trivial, enfadonha, rebuscada, incompreensível, inútil ou simplesmente embaraçosa seja razão suficiente para o aspirante a poeta resolver esconder o seu trabalho da vista do público para sempre.
Naturalmente muitos poemas são imediatamente destruídos, queimados, rasgados, lançados à sanita.
Alguns são dobrados em quadradinhos a fazer de calço sob uma peça de mobília instável (o que prova a sua utilidade!)
Outros são escondidos atrás dum tijolo solto ou dum cano de esgoto ou fechados na caixa dum despertador velho ou metidos entre páginas dum livro obscuro com poucas hipóteses de voltar a ser aberto.
É possível que um dia alguém os encontre, mas é pouco provável. A verdade é que a poesia que não se lê fica quase sempre perdida, condenada a juntar-se a um grande e invisível rio de lixo que corre para fora dos subúrbios. Enfim quase sempre.
Em raras ocasiões, alguns papéis escritos mais obstinados conseguem fugir para um quintal ou ruela são levados pelo vento ao longo dos muros e, finalmente, vão parar ao parque de estacionamento dum centro comercial como tantas outras coisas. E é ai que um caso espantoso se dá. Dois ou mais farrapinhos de poesia são atraídos uns para os outros por um estranho magnetismo ignorado pela física e, muito devagar, vão-se unindo e formando uma bola grande e informe.
Se ninguém lhe mexer, essa bola vai-se aos poucos tornando maior e mais redonda, e mais versos livres, confissões, segredos, devaneios, votos e cartas de amor não enviadas se prendem uns aos outros um a um.
Essa bola corre rasteirinha pelas ruas como um carro corredor durante meses ou anos. Se sair só à noite, pode sobreviver ao trânsito e às crianças e sempre rolando devagar sobre si mesma, escapar aos caracóis (seus maiores predadores). Mais crescida, abriga-se instintivamente do mau tempo sem ninguém dar por ela mas, fora isso, vagueia pelas ruas à procura dos restos de ideias e emoções esquecidas.
Com sorte e paciência a bola da poesia torna-se grande, gigante, enorme: uma imensa acumulação de papelinhos que acaba por se erguer e levitar movida pela simples força de tanta emoção silenciada. Vai pairando docemente sobre os telhados dos subúrbios quando toda a gente dorme e os cães solitários ladram-lhe a meio da noite.
Infelizmente uma bola de papel por maior e mais leve que seja contínua a ser muito frágil. Mais tarde ou mais cedo será apanhada por uma súbita rajada de vento, fustigada pela chuva torrencial e reduzida em poucos minutos a um milhão de papelinhos ensopados.
Uma manhã toda a gente ao acordar vai encontrar uma pasta esponjosa a cobrir os jardins, a entupir as sarjetas, a colar-se aos pára-brisas dos carros. O trânsito vai ficar interrompido, as crianças encantadas, os adultos perplexos sem conseguirem perceber a origem do fenómeno. Ainda mais estranho será descobrirem que cada pedaço de papel molhado que contém algumas palavras desbotadas reunidas num verso acidental quase ilegível mas inegavelmente presente.
A cada leitor os versos murmuram mensagens diferentes, mensagens alegres, mensagens tristes, verdadeiras, absurdas, hilariantes, profundas e perfeitas. Ninguém será capaz de explicar a estranha sensação de leveza ou o sorriso secreto que perdura muito depois de os varredores acabarem o seu trabalho.
  
Shaun tan

2 comentários:

  1. "Contos dos Subúrbios"
    Está aqui na estante. ;o)

    Paula - Marvão

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  2. E são fantásticos Paula!

    Que pena não poder publicar o texto com a ilustração :-((

    Beijo

    João

    ResponderEliminar

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