quinta-feira, 14 de agosto de 2025

1903 - (da Resiliência) Crónica de um dia de praia

Decidi ir à praia à tarde.

Chego à Costa de Caparica e ao parque de estacionamento. Vejo muitos carros a sair; fico satisfeito por pensar que irá ser fácil encontrar lugar.

Informam-me que a Via Verde está fora de serviço; apalpo o bolso e vejo que tenho moedas. Entro e estaciono.

As praias estão cheias e está hasteada bandeira amarela.

Chego à segunda praia: há uma enorme escada de madeira, meio instável; decidimos não a usar para chegar à areia. Constato que já não existe a escada de cimento, a meio da praia, que vinha da minha infância. A alternativa seria ir até ao fim do paredão para descer pela rampa dos barcos de pesca artesanal.
Opto por descer por umas pedras; escorrego e caio. Sou prontamente ajudado por um casal que saía da praia. Agradeço e informo que foi só o susto: “Está tudo bem, está tudo bem” — repito, também para mim mesmo.

Arranjo um lugar à beira-mar; aqui ficamos. Está bandeira amarela, a maré está cheia… sinal de que começou a vazar e, como é normal na Costa, a água está a puxar…
O nadador-salvador, atento à praia e aos banhistas, apita para um ou outro virem mais para terra. Parece-me que é obedecido…

O primeiro e o segundo banhos foram reconfortantes! Estava calor, a água a boa temperatura. A praia da Costa estava, como de costume, com ondas; soube-me bem.

Quase que levo com um surfista e dois ou três miúdos que vêm com as ondas…

De regresso à toalha, saco de um livro. Veio uma onda e molhou a minha toalha.

Mudamos de poiso. Aqui também há muita gente. Sento-me na toalha molhada para poder ler. Por algum motivo, não me consigo concentrar na leitura. Percebo que há música perto de nós: no meio de um grupo de adolescentes, um deles traz uma coluna Bluetooth. Anda com a coluna na mão e mal consegue jogar futebol com os amigos tal o desiqulíbrio que a coluna lhe dá.

Penso, mais uma vez, que deveria trazer sempre comigo também uma coluna Bluetooth e pôr o meu Mozart em altos berros — a Sinfonia nº 40, por exemplo, ela que me acompanha em tantas noites de trabalho — ou uma bela ária de ópera, em que as potencialidades da voz feminina são exploradas até ao extremo.

Procuro pôr o som na minha frequência muda e retomar a leitura.

Voam dois chapéus de sol, mas nem dei pelo vento. Fui de novo à água.

Já ao final da tarde, constato que a praia está mais vazia. Aqui e ali joga-se à bola e vejo, ao meu lado, um embrulho de Calipo e um pedaço de película de embrulho de sandes. Olho melhor e encontro mais duas garrafas de água na areia. Reparo que há oito caixotes do lixo atrás de nós e vem-me à cabeça a polémica recente sobre o currículo de cidadania. Lembro-me das aulas de Ciências Sociais que tive em 1976 e de um livro de Dragomir Knapic, que continha imagens de petroleiros a derramar petróleo nos mares e que me deixavam a pensar. Penso em cinquenta anos de educação ambiental e no lixo que estava naquela praia. Muito lixo mesmo.

As pessoas estendem a toalha em cima de lixo, lixo. A praia estava mesmo imunda: uma fralda no paredão…

Penso outra vez nas aulas de cidadania, na reciclagem e na educação ambiental… (E eu que até creio no potencial transformador da escola.)
Três R: Reduzir, Reutilizar, Reciclar… Percebo que já não sei quantos são. Há uns tempos ouvi quatro R: Reduzir, Reutilizar, Reciclar e Recusar. Acho que já há cinco! Deve ser daí que vem esta confusão na praia, penso eu…

Vou a um café e peço uma Coca-Cola Zero, com gelo. Dizem-me que não há gelo. Peço, em alternativa, uma água com gás com sabores.

Perguntam-me que sabor quero. Digo limão. Trazem-me, com enfado, água de sabor a framboesa e outra de um sabor qualquer. Digo que prefiro então a Coca-Cola Zero, sem gelo.

Dizem-me que não há Coca-Cola e perguntam se pode ser uma Pepsi. Respondo que sim…

A menina que me trouxe as águas desinteressa-se de mim, pois lhe dá trabalho andar para lá e para cá. Diz à outra menina: “O que é que ele quer?”

Vem a Pepsi.

Não é Zero! Digo até que pode ser uma cerveja.

A outra menina do balcão traz-me uma Coca-Cola Zero, sem gelo, e eu peço desculpa pelo trabalho. Quem está comigo repreende-me: quem tem de pedir desculpas é uma das meninas…

Abro o meu telemóvel… Uma story mostrava três casamentos e três lutas entre noivos relacionadas com a abertura do bolo de noiva impedindo que todos os presentes vivessem um momento de verdadeira comunhão e partilha da alegria dos noives, partilhando um bolo significativo em comum. Noutro discutia-se um artigo do Expresso que só podia ser lido pelos assinantes ou subscritores do Jornal. Deste modo, discutia-se a partir do destaque sem conhecer o texto... Noutro ainda discutia-se acaloradamente qualquer coisa de que já nem me lembro — a espuma dos dias. Desligo o telemóvel. Olho ao lado e duas pessoas filmam comida e pergunto-me: para quê?

Vou para o carro e ainda está gente na praia. Está já lusco-fusco. A maré estava mesmo a descer e ainda se tomava banho. Ondas mais baixas e os inevitáveis telemóveis a filmar sei lá o quê, pois o pôr-do-sol já tinha sido. 

Chego ao carro e há fila para pagar na máquina. Aguardo respeitosamente… 1,20 euros. Pago.

A água nem estava má.

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

1902 (da resiliência) - Do que um homem é capaz

Do que um homem é capaz?
As coisas que ele faz
Pra chegar aonde quer

É capaz de dar a vida
Pra levar de vencida
Uma razão de viver

A vida é como uma estrada
Que vai sendo traçada
Sem nunca arrepiar caminho

E quem pensa estar parado
Vai no sentido errado
A caminhar sozinho

Vejo gente cuja vida
Vai sendo consumida
Por miragens de poder

Agarrados a alguns ossos
No meio dos destroços
Do que nunca vão fazer

Vão poluindo o percurso
Com as sobras do discurso
Que lhes serviu pra abrir caminho

À custa das nossas utopias
Usurpam regalias
Pra consumir sozinhos

Com políticas concretas
Impõem essas metas
Que nos entram casa adentro

Como a trilateral
Com a treta liberal
E as virtudes do centro

No lugar da consciência
A lei da concorrência
Pisando tudo pelo caminho

Pra castrar a juventude
Mascaram de virtude
O querer vencer sozinho

Ficam cínicos brutais
Descendo cada vez mais
Pra subir cada vez menos

Quanto mais o mal se expande
Mais acham que ser grande
É lixar os mais pequenos

Quem escolher ser assim
Quando chegar ao fim
Vai ver que errou o seu caminho

Quando a vida é hipotecada
No fim não sobra nada
E acaba-se sozinho

Mesmo sendo os poderosos
Tão fracos e gulosos
Que precisam do poder

Mesmo havendo tanta gente
Pra quem é indiferente
Passar a vida a morrer

Há princípios e valores
Há sonhos e amores
Que sempre irão abrir caminho

E quem viver abraçado
Na vida que há ao lado
Não vai morrer sozinho

E quem morrer abraçado
À vida que há ao lado
Não vai viver sozinho

José Mário Branco 

terça-feira, 6 de setembro de 2022

1901(das palavras) - Tu estás aqui (Ruy Belo)


TU ESTÁS AQUI 
Estás aqui comigo à sombra do sol
escrevo e oiço certos ruídos domésticos
e a luz chega-me humildemente pela janela
e dói-me um braço e sei que sou o pior aspecto do que sou
Estás aqui comigo e sou sumamente quotidiano
e tudo o que faço ou sinto como que me veste de um pijama
que uso para ser também isto este bicho
de hábitos manias segredos defeitos quase todos desfeitos
quando depois lá fora na vida profissional ou social só sou um nome e sabem
                                                                                                    o que sei o
que faço ou então sou eu que julgo que o sabem
e sou amável selecciono cuidadosamente os gestos e escolho as palavras
e sei que afinal posso ser isso talvez porque aqui sentado dentro de casa sou
                                                                                                  outra coisa
esta coisa que escreve e tem uma nódoa na camisa e só tem de exterior
a manifestação desta dor neste braço que afecta tudo o que faço
bem entendido o que faço com este braço
Estás aqui comigo e à volta são as paredes
e posso passar de sala para sala a pensar noutra coisa
e dizer aqui é a sala de estar aqui é o quarto aqui é a casa de banho
e no fundo escolher cada uma das divisões segundo o que tenho a fazer
Estás aqui comigo e sei que só sou este corpo castigado
passado nas pernas de sala em sala. Sou só estas salas estas paredes
esta profunda vergonha de o ser e não ser apenas a outra coisa
essa coisa que sou na estrada onde não estou à sombra do sol
Estás aqui e sinto-me absolutamente indefeso
diante dos dias. Que ninguém conheça este meu nome
este meu verdadeiro nome depois talvez encoberto noutro
nome embora no mesmo nome este nome
de terra de dor de paredes este nome doméstico
Afinal fui isto nada mais do que isto
as outras coisas que fiz fi-Ias para não ser isto ou dissimular isto
a que somente não chamo merda porque ao nascer me deram outro nome
                                                                                        que não merda
e em princípio o nome de cada coisa serve para distinguir uma coisa das
                                                                                        outras coisas
Estás aqui comigo e tenho pena acredita de ser só isto
pena até mesmo de dizer que sou só isto como se fosse também outra coisa
uma coisa para além disto que não isto
Estás aqui comigo deixa-te estar aqui comigo
é das tuas mãos que saem alguns destes ruídos domésticos
mas até nos teus gestos domésticos tu és mais que os teus gestos domésticos
tu és em cada gesto todos os teus gestos
e neste momento eu sei eu sinto ao certo o que significam certas palavras como
                                                                                                   a palavra paz
Deixa-te estar aqui perdoa que o tempo te fique na face na forma de rugas
perdoa pagares tão alto preço por estar aqui
perdoa eu revelar que há muito pagas tão alto preço por estar aqui
prossegue nos gestos não pares procura permanecer sempre presente
deixa docemente desvanecerem-se um por um os dias
e eu saber que aqui estás de maneira a poder dizer
sou isto é certo mas sei que tu estás aqui
Toda a Terra
Todos os Poemas
Lisboa, Assírio & Alvim, 2000
 

domingo, 2 de fevereiro de 2020

1900 (da esperança) Rhiannon Giddens - Wayfaring Stranger



I'm just a poor wayfaring stranger
Traveling through this world below
There is no sickness, no toil, nor danger
In that bright land to which I go
I'm going there to see my Father
And all my loved ones who've gone on
I'm just going over Jordan
I'm just going over home
I know dark clouds will gather 'round me
I know my way is hard and steep
But beauteous fields arise before me
Where God's redeemed, their vigils keep
I'm going there to see my Mother
She said she'd meet me when I come
So, I'm just going over Jordan
I'm just going over home
I'm just going over Jordan
I'm just going over home

sábado, 21 de setembro de 2019

1899 (Do amor) - La molinera

La Molinera
Estando la molinera
Sentadita en su molino
Passou por alla un soldado, olé olé
Vengo de moler el trigo
Que vengo de moler morena
Que vengo de moler, morena
De los molinos de abajo
Dormí con la molinera, olé olé
No me ha cobrado el trabajo
Que vengo de moler, morena
Que vengo de moler, morena
De los molinos de arriba
Dormí con la molinera, olé olé
No me ha cobrado la maquia
Que vengo de moler, morena
Que vengo de moler, morena
De los molinos del frente
Dormí con la molinera, olé olé
Se enteró toda la gente
Que vengo de moler, morena
Que vengo de moler, morena
De los molinos azules
Dormí con la molinera, olé olé
Sabado , domingo y lunes
Que vengo de moler, morena

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quinta-feira, 12 de setembro de 2019

1898 (Do espanto de existir) - A felicidade

A felicidade 

A felicidade sentava-se todos os dias
no peitoril da janela.
Tinha feições de menino inconsolável.
Um menino impúbere
ainda sem amor para ninguém,
gostando apenas de demorar as mãos
ou de roçar lentamente o cabelo pelas
faces humanas.
E, como menino que era,
achava um grande mistério no seu
próprio nome.
Jorge de Sena

quinta-feira, 21 de março de 2019

1897 (da resiliência) - Uma vez que já tudo se perdeu

Uma vez que já tudo se perdeu

Que o medo não te tolha a tua mão
Nenhuma ocasião vale o temor
Ergue a cabeça dignamente irmão
Falo-te em nome seja de quem for
No princípio de tudo o coração
Como o fogo alastrava em redor
Uma nuvem qualquer toldou então
Céus de canção promessa e amor
Mas tudo é apenas o que é
levanta-te do chão põe-te de pé
Lembro-te apenas o que te esqueceu
Não temas porque tudo recomeça
Nada se perde por mais que aconteça
Uma vez que já tudo se perdeu
Ruy Belo

1903 - (da Resiliência) Crónica de um dia de praia

Decidi ir à praia à tarde. Chego à Costa de Caparica e ao parque de estacionamento. Vejo muitos carros a sair; fico satisfeito por pensar ...